May 16, 2020

ENTREVISTA DELAZ: Mãe e profissional de saúde recomeçando no Canadá

Em homenagem ao mês das mães e a semana do Enfermeiro, hoje teremos uma convidada muito especial para o DELAZ Entrevista: Flávia Oliveira Mandić.



Flávia, conte para nós um pouquinho da sua biografia.

Sou de Brasília, formada em enfermagem pela Universidade de Brasília. Meu primeiro emprego foi de caixa no Banco do Brasil, passei no concurso quando ainda cursava universidade. Depois de formada, trabalhei na Rede Sarah de Hospitais, primeiro em Brasília e depois em São Luís. Vim a Vancouver em 1997, acompanhando uma amiga num congresso internacional de Enfermagem. Visitamos alguns hospitais como parte do programa do congresso e eu soube que voltaria a morar aqui.

Você imigrou sozinha para o Canadá. Por que você tomou a decisão de deixar o Brasil? Quais foram os maiores desafios e medos nesta fase de mudança de país?

Quando eu vim para o congresso internacional, comecei a me preparar para voltar. Já falava inglês fluentemente, mas achava que não seria suficiente pra cursar um mestrado. Então, pedi demissão do emprego e passei 6 meses aqui em Vancouver em 1998. Comecei num curso de inglês e fiquei na turma mais avançada da escola, então comecei a procurar serviço voluntário. Fui voluntária num lar de idosos e no Vancouver General Hospital. Enquanto estava aqui, fui diretamente ao Conselho de Enfermagem e peguei todas as informações para revalidação do diploma. Voltei ao Brasil, traduzi toda a documentação, dei entrada no processo, passei na prova escrita de inglês e por 2 vezes não atingi a 80% na prova oral do TOEFL no Brasil, que na época era separada da prova escrita. Enfermeiros não estavam na lista de profissões em demanda em 1998/99, então minha professora de inglês de Vancouver, que ficou minha amiga, sugeriu que eu tentasse vir como babá. Minha antiga família da homestay conseguiu outra família canadense pra me contratar como babá. Vim com o visto de trabalho pra babá e, se na pior das hipóteses, se eu não passasse logo na prova oral de inglês e na prova do Conselho de Enfermagem, após 2 anos como babá, eu conseguiria automaticamente a residência permanente. 

Logo que cheguei, comecei a namorar um professor canadense, que me deu muito apoio e praticou comigo um verão inteiro pra eu passar na prova oral do TOEFL. Tirei 100%! A partir deste momento, eu já poderia tirar a licença de enfermagem temporária e tentar um emprego como enfermeira, mas eu preferi esperar até passar na prova escrita do Conselho de Enfermagem e tirar a licença definitiva. A prova só era realizada 4 vezes por ano e alguns meses pra fazer, mais 2 meses pra receber o resultado. Passei de primeira! O asilo onde eu tinha feito serviço voluntário me deu referências maravilhosas e comecei a trabalhar no St Paul's Hospital em menos de um mês após receber o resultado. Ao invés de trabalhar 2 anos como babá, fiquei 11 meses e eu mesma fiz todo o processo de mudar meu visto de babá para o de enfermeira. Meses depois, o hospital queria pagar um curso de especialização pra mim e não pude fazer porque meu visto era exclusivo de trabalho e não dava direito a estudos. Foi quando a província lançou o Provincial Nominee Program e dei entrada junto com dois enfermeiros australianos do meu hospital. Houve um erro, o hospital não enviou nossos documentos a tempo e em vez de 3 meses, o processo levou 8, mas em menos de 2 anos em Vancouver eu obtive minha residência permanente. Nunca paguei um centavo de consultor ou advogado. 

Conte como planejou a transição de carreira Brasil-Canadá. Que lições você aprendeu e poderia compartihar com alguém que esteja planejando esta mudança?

Eu fiz tudo sozinha, fui pessoalmente ao Conselho de Enfermagem de BC pra pegar informações, dei entrada do processo lá do Brasil. Tinha 3 anos de experiência na área e já falava inglês. Atualmente as pessoas contratam consultores de imigração e a minha impressão é de que os conselhos deles são padrões: recomendam um curso (geralmente de "business") pra pessoa conseguir um visto de emprego em tempo parcial e, se for casada, o parceiro consegue um visto de trabalho em tempo integral. O fato de atualmente haver muitos grupos de brasileiros nas redes sociais tem um lado bom, que é o apoio antes mesmo da chegada ao Canadá, mas tem um lado negativo que é as pessoas ficarem muito dependentes das experiências dos outros, ao invés de tentar descobrir os próprios caminhos. O conselho que eu daria pra quem tem uma profissão em alta demanda aqui e que exigem um processo de revalidação é investir muito no inglês antes de vir, entrar em contato diretamente com o órgão regulamentador da profissão e pegar informação diretamente com eles. As regras mudaram muito, eu não precisei fazer uma única aula de enfermagem pra revalidar meu diploma, mas atualmente exigem curso. Vale lembrar que o tempo que a pessoa passa aqui sem trabalhar na área pode fazer diferença na hora de revalidar o diploma, então o quanto puder ser adiantado antes da chegada em termos de documentação, melhor. 

Qual a maior diferença entre a enfermagem no Brasil e no Canadá?

Eu diria que a maior diferença é o reconhecimento. É impressionante como o canadense em geral valoriza os profissionais de saúde. Durante a pandemia, ouvimos tristes relatos de profissionais de saúde no Brasil (médicos e enfermeiros principalmente) sendo discriminados no próprio prédio, vítimas de agressões e vandalismo.
Posso dizer que nunca sofri discriminação aqui. No meu primeiro cargo de liderança aqui, terminei um projeto antes do prazo e uma diretora me perguntou se eu tinha mestrado, porque ela estava impressionada comigo. Foi aí que retomei o sonho de fazer mestrado, adiado enquanto minhas prioridades giravam em torno de comprar imóvel, casar e ter filhos. Depois meu pai adoeceu no Brasil e adiei mais um pouco pra poder viajar e cuidar dele. Ele faleceu logo que comecei o curso e os estudos foram fundamentais pra me ocupar na fase do luto. Concluí meu mestrado há menos de 2 anos e fui promovida antes da minha formatura. Lidero duas equipes com um total de 170 profissionais, a maioria enfermeiros muito jovens, mas também assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, etc. Na organização onde trabalho, a vice-presidente, as CEOs dos dois hospitais interligados (BC Children's e BC Women's) e duas das 3 diretoras senior são enfermeiras. Mulheres fortes, mães, que são reconhecidas pela competência. Essa não é a realidade brasileira

Em que fase da carreira você está hoje?

Hoje eu sou gerente de dois andares no BC Chidren's Hospital. Trabalhei 12 anos no centro cirúrgico no St Paul's Hospital e até hoje é minha área favorita pra trabalhar, mas eu não tinha mais como crescer continuando lá. O BC Children's é um hospital maravilhoso pra trabalhar, porque temos uma liderança que demonstra compaixão e apoia o crescimento dos profissionais. A CEO já me perguntou que oportunidades eu quero para crescer porque não querem que eu saia de lá. Como não trabalhar feliz assim? Pra completar, fica a 8 minutos a pé do meu quintal e em plena pandemia, isso é uma vantagem imensa. 

Quais seus planos e sonhos para o futuro na sua profissão?

Eu ainda pretendo crescer e chegar à diretora, porque quanto mais alto o degrau, maior a possibilidade de efetuar mudanças. Apesar do medo do desconhecido que a pandemia trouxe, todo o planejamento envolvido foi muito interessante pra mim. Reuniões diárias com o EOC (Emergency Operations Centre) foram muito valiosas pro meu aprendizado. Eu fiz meu mestrado em liderança na área da saúde e tento reconhecer os futuros líderes entre os jovens nas minhas equipes e mostrar a eles o talento que muitas vezes eles nem sabem que têm.

Como mãe e profissional, como você concilia a sua rotina? Que boas práticas poderia nos deixar?

Eu gosto muito do meu trabalho, então não é sacrifício. Já não dou plantão há muitos anos, mas quando eu trabalhava no centro cirúrgico, meu filho era pequeno e não mudava em nada a rotina dele. Quando eu trabalhava de dia, meu marido o deixava na creche porque eu entrava muito cedo. Quando eu trabalhava de noite, entrava às 23:00, então eu estava em casa pro jantar, pra dar banho e colocar pra dormir, ele nem sabia que eu trabalhava de noite. As mães muitas vezes receiam os plantões, mas é muito bom ter folga durante a semana e poder voluntariar na escola. Enfermeiros ganham o dobro pra trabalhar em feriados (em alguns feriados, o pagamento é 2.5 a hora normal), então quando a gente é jovem, é uma ótima oportunidade de juntar dinheiro.

Já não dou plantões desde que minha filha nasceu, há 9 anos. Fui promovida a um cargo de liderança ainda durante a licença-maternidade, o que dificilmente aconteceria no Brasil. Como tenho muitos dias de férias pelos anos trabalhados (35 dias úteis, mais 10 dias extras por ficar de sobreaviso 4 semanas por ano para problemas administrativos), eu tiro folga pra participar dos eventos esportivos e voluntariar nas escolas dos meus filhos. Os dois estudam em escolas católicas e precisamos cumprir um número mínimo de horas voluntárias anualmente. Eu sempre ultrapasso as horas mínimas, adoro estar presente e conhecer os outros pais.